Luzes primárias e sons primitivos

Não existem linguagens puras. Toda linguagem é uma mistura, uma hibridação, uma miscigenação. Nas fotos de Fernanda Chemale, a mistura de sons e imagens, além de evidente, transforma-se numa estética própria e original. Os sons são fundadores da comunicação humana. Quando determinados macacos conseguiram estabelecer significados comuns para seus grunhidos, fundaram a espécie humana. Um pouco mais tarde, estavam pintando as presas de suas caçadas nas paredes das cavernas. Sons e imagens sempre dialogaram: os sons portando uma sintaxe mínima, uma base para ações coletivas; as imagens dando forma para desejos e emoções, uma plataforma para a mágica. A palavra escrita veio muito depois, quando os homens já precisavam de discursos persuasivos e de símbolos mais abstratos. As fotos de Fernanda, apesar de não escaparem da dimensão discursiva – e nenhuma imagem técnica escapa: são sempre textos a desvendar –, têm uma primitividade e uma força expressiva que nascem da paixão pela mística do palco, pelas batidas brutas do rock e pela dança radical das luzes.

Tanto a música quanto a fotografia exigem certos conhecimentos técnicos. Mas no (bom) rock, os instrumentos da racionalidade estão a serviço da emoção. Os (bons) fotógrafos também funcionam assim: dominam suas câmeras e suas objetivas para que elas sejam extensões tecnológicas de seu olhar. Um olhar de caçador pré-histórico à espreita de sua presa. Um olhar saudavelmente selvagem. Em várias fotos de Fernanda, os músicos aparecem como monstros, (de)formados pela impressão da luz sobre o filme. Com um tempo de exposição longo (e, portanto, primitivo, distante dos sofisticados obturadores de milésimos de segundo), aparecem os animais que sempre preservaram a essência do rock, essa música tribal, simples e orgânica, destinada à dança, à bebida, ao amor e à liberdade. Capturar esses animais, em pleno ritual de celebração da vida, é a missão de Fernanda.

Não é tarefa fácil. Exige paciência, constância e a sabedoria de aproximar-se de cada presa com a estratégia mais adequada. Às vezes, Fernanda é um predador: escondida nas laterais do palco ou submersa na platéia, ela dispara sem aviso, invisível, instantânea e sem clemência. Outras vezes, aproveitando sua simpatia e seu olhar meigo, estabelece cumplicidades e pede às vítimas um certo ângulo, uma certa luz, para obter um retrato mais quente e mais revelador. O trabalho de Fernanda Chemale veio para ficar. Sua combinação de sensibilidade e primitivismo, além de documentar uma época e uma tribo, é um testemunho dos laços poderosos que unem música, luz, rock e fotografia.

Carlos Gerbase

21/01/2004

Primary Lights and Primitive Sounds

There are no pure languages. Every language is a mix, a hybridization, a miscegenation. On Fernanda Chemale’s photographs, mixes of sounds and images, as well as evident, become her own original aesthetics. Sounds are foundations of human communication. When certain apes were capable of establishing common meanings for their grunts, they founded the human species. A little later, they were painting the preys of their hunts on cave walls. Sounds and images have always had dialogues: sounds carrying minimum syntax, basis for collective action; images giving form to desires and emotions, platform for magic. Written words came much later, when men needed persuasive discourses and more abstract symbols. Fernanda’s photographs, even though they do not escape discursive dimension—and no technical image does; they are always texts to be unraveled—have such primitive character and expressive power that they are born from a passion for stage mysticism and rough rock beats, and from the radical dance of lights.

Both music and photograph require certain technical knowledge. However, in (good) rock, rationality tools serve emotions. (Good) photographers also operate thus: they dominate their cameras and their lenses so that they are technological extensions of their regards. A regard of pre-historic hunters stalking their prey. A healthily wild regard. In many photographs by Fernanda, musicians appear as monsters, (de)formed by the impression of light on film. With long times of exposure (and, therefore, primitive, far-removed from millisecond sophisticated shutters), the animals that have always preserved the essence of rock appear; this is tribal music, simple and organic, aimed at dancing, at booze and at freedom. Fernanda’s mission is to capture these animals amidst their rituals of celebrating life.

This is not an easy task. It entails patience, constancy and wisdom to face each prey upfront, using the most suitable strategy. Sometimes, Fernanda is a predator: hidden on the sides of the stage or submerged among the audience, she shoots without any warning, invisible, candid and unforgiving. In other occasions, taking advantage of her friendliness and her meek eyes, she establishes complicity and ask her victims for a certain angle, a certain light, so that she can obtain a warmer, more revealing portrait. Fernanda Chemale’s work is here to stay. Her combination of sensitivity and primitivism, as well as the fact that she is documenting a time and a tribe, is testimony of powerful bonds linking music, light, rock, and photography.

Carlos Gerbase