Os Replicantes

Os Replicantes estarão fazendo 40 anos em 2024. Já estamos nos preparando para esta festa!
Aqui um pouco dos encontros que tive com essa banda sensacional. Viva!

Texto que o professor Carlos Gerbase escreveu para o livro Tempo de Rock e Luz

Luzes primárias e sons primitivos
Não existem linguagens puras. Toda linguagem é uma mistura, uma hibridação, uma miscigenação. Nas fotos de Fernanda Chemale, a mistura de sons e imagens, além de evidente, transforma-se numa estética própria e original. Os sons são fundadores da comunicação humana. Quando determinados macacos conseguiram estabelecer significados comuns para seus grunhidos, fundaram a espécie humana. Um pouco mais tarde, estavam pintando as presas de suas caçadas nas paredes das cavernas. Sons e imagens sempre dialogaram: os sons portando uma sintaxe mínima, uma base para ações coletivas; as imagens dando forma para desejos e emoções, uma plataforma para a mágica. A palavra escrita veio muito depois, quando os homens já precisavam de discursos persuasivos e de símbolos mais abstratos. As fotos de Fernanda, apesar de não escaparem da dimensão discursiva – e nenhuma imagem técnica escapa: são sempre textos a desvendar –, têm uma primitividade e uma força expressiva que nascem da paixão pela mística do palco, pelas batidas brutas do rock e pela dança radical das luzes.
Tanto a música quanto a fotografia exigem certos conhecimentos técnicos. Mas no (bom) rock, os instrumentos da racionalidade estão a serviço da emoção. Os (bons) fotógrafos também funcionam assim: dominam suas câmeras e suas objetivas para que elas sejam extensões tecnológicas de seu olhar. Um olhar de caçador pré-histórico à espreita de sua presa. Um olhar saudavelmente selvagem. Em várias fotos de Fernanda, os músicos aparecem como monstros, (de)formados pela impressão da luz sobre o filme. Com um tempo de exposição longo (e, portanto, primitivo, distante dos sofisticados obturadores de milésimos de segundo), aparecem os animais que sempre preservaram a essência do rock, essa música tribal, simples e orgânica, destinada à dança, à bebida, ao amor e à liberdade. Capturar esses animais, em pleno ritual de celebração da vida, é a missão de Fernanda.
Não é tarefa fácil. Exige paciência, constância e a sabedoria de aproximar-se de cada presa com a estratégia mais adequada. Às vezes, Fernanda é um predador: escondida nas laterais do palco ou submersa na platéia, ela dispara sem aviso, invisível, instantânea e sem clemência. Outras vezes, aproveitando sua simpatia e seu olhar meigo, estabelece cumplicidades e pede às vítimas um certo ângulo, uma certa luz, para obter um retrato mais quente e mais revelador. O trabalho de Fernanda Chemale veio para ficar. Sua combinação de sensibilidade e primitivismo, além de documentar uma época e uma tribo, é um testemunho dos laços poderosos que unem música, luz, rock e fotografia.
Carlos Gerbase
21/01/2004